Em 6 de maio de 2005, o ar úmido e salgado de Havana foi cortado por um som que não era ouvido na ilha em sua forma mais pura e potente há mais de quatro décadas: o rugido de uma banda de rock americana. Naquele dia, o Audioslave, um supergrupo forjado nas cinzas do Soundgarden e do Rage Against the Machine, subiu ao palco da Tribuna Antimperialista José Martí e fez história.
Diante de uma multidão estimada entre 60.000 e 70.000 pessoas, a banda realizou o primeiro grande concerto gratuito ao ar livre de um grupo de rock dos EUA em Cuba desde a revolução de 1959. Foi mais do que um show; foi um evento sísmico, um ato de diplomacia do rock and roll que abalou as fundações de um embargo cultural de longa data e uniu duas nações ideologicamente opostas através da linguagem universal da música.
A história do Audioslave em Havana é a crônica de como quatro músicos, armados com guitarras e uma mensagem de união, conseguiram furar um bloqueio que nem a política nem o tempo foram capazes de derrubar, deixando um legado que ecoa até hoje.
Guitarras Contra o Silêncio: O Rock Sob o Regime Cubano
Para entender a magnitude do show do Audioslave, é preciso primeiro compreender a complexa e muitas vezes dolorosa história do rock and roll em Cuba. Após a revolução de 1959 e o subsequente alinhamento com a União Soviética, a cultura ocidental, especialmente a americana, passou a ser vista com profunda desconfiança.
O rock, com sua energia rebelde e associação à juventude contestadora dos EUA, foi rotulado como uma ferramenta do imperialismo, uma forma de “penetração cultural capitalista” que ameaçava a formação do “Homem Novo” socialista idealizado por Che Guevara. Nos anos 1960 e 1970, ouvir The Beatles ou The Rolling Stones era um ato de ousadia. Ter cabelos longos ou possuir um álbum de rock importado poderia ser interpretado como um comportamento contrarrevolucionário.
A Era da Censura e os “Elvispreslianos”

A repressão não era apenas ideológica; ela tinha consequências reais e severas. Muitos jovens roqueiros, rotulados pejorativamente por Fidel Castro como “elvispreslianos”, foram marginalizados e perseguidos. Alguns foram enviados para as Unidades Militares de Ajuda à Produção (UMAP), campos de trabalho forçado criados na década de 1960 para “reeducar” indivíduos considerados socialmente desviantes, incluindo homossexuais, religiosos e intelectuais que não se alinhavam ao regime.
A música que ecoava a liberdade em outras partes do mundo era, em Cuba, um bilhete para o ostracismo. As poucas bandas de rock que existiam na ilha careciam de espaços para se apresentar, equipamentos adequados ou qualquer meio de promover sua música, sobrevivendo em um underground sufocante.
A Improvável Ponte: A Diplomacia do Rock
A ideia de uma banda americana de rock de alto calibre tocar em Havana parecia, por muito tempo, uma fantasia. No entanto, no início dos anos 2000, pequenas fissuras começaram a aparecer no gelo. Em 2001, a banda britânica Manic Street Preachers se apresentou no Teatro Karl Marx, com o próprio Fidel Castro na plateia, um sinal de que os tempos estavam, lentamente, mudando.
A ideia de levar o Audioslave a Cuba foi uma iniciativa da própria banda, impulsionada pelo guitarrista Tom Morello, conhecido por seu ativismo político. O processo, contudo, foi um labirinto burocrático que exigiu meses de negociações e uma rara convergência de vontades políticas.
A Dupla Aprovação: Washington e Havana

Realizar o concerto exigia uma permissão extraordinária de dois governos adversários. Do lado americano, o Departamento do Tesouro, sob a administração de George W. Bush, precisava aprovar a viagem, uma exceção ao rigoroso embargo econômico e de viagens. Do lado cubano, era necessária a bênção do mais alto escalão do governo, incluindo o próprio Fidel Castro.
Segundo o diário de turnê de Tom Morello, a aprovação final de ambos os lados chegou apenas 36 horas antes da partida da banda. Foi um feito diplomático tão delicado quanto monumental, uma prova de que a música poderia ter sucesso onde a política havia falhado por décadas. A banda fretou o avião particular do time de basquete Miami Heat e partiu para o que Morello descreveria como “o maior destaque” de sua carreira musical.
Bem-vindos a Havana: Um Choque de Realidades

A chegada do Audioslave a Havana foi uma imersão em uma realidade paralela. Como Morello narrou em seu diário, a ausência de outdoors da Starbucks ou de qualquer publicidade capitalista era gritante. Em seu lugar, as ruas eram adornadas com murais de Che Guevara, José Martí e Fidel Castro. A frota de carros era um museu ambulante de modelos americanos dos anos 1950, relíquias de uma era pré-embargo. A banda se hospedou no icônico Hotel Nacional, um antigo reduto da máfia e de celebridades de Hollywood na Cuba pré-revolucionária. A atmosfera era de uma nação “pobre, mas orgulhosa”, um lugar onde a história se recusava a ser esquecida.
O Encontro com a Cultura Cubana

Nos dias que antecederam o show, os membros da banda exploraram a cidade, absorvendo a cultura local. Eles visitaram Havana Velha, o Parque John Lennon (onde Chris Cornell simbolicamente se sentou ao lado da estátua do ex-Beatle) e a imponente Plaza de la Revolución. Em uma coletiva de imprensa com 200 jornalistas, a banda declarou que “o embargo do rock and roll contra Cuba acabou”.
Eles também visitaram o Instituto Superior de Arte, onde se impressionaram com o talento de jovens músicos que estudavam gratuitamente, apesar da chocante falta de recursos, como cordas de guitarra, devido ao embargo americano. Essa visita reforçou a convicção da banda sobre a importância de sua missão: a troca cultural.
O Concerto: Uma Noite de Fúria e Catarse
A noite de 6 de maio de 2005 foi elétrica. A Tribuna Antimperialista, um local construído especificamente para manifestações contra o governo dos EUA, foi ironicamente o palco para este gesto de união. Milhares de jovens, muitos dos quais viajaram de todas as partes da ilha e acamparam durante a noite, lotaram o local. A energia era palpável, uma mistura de incredulidade e euforia.
Após a apresentação da banda cubana X Alfonso, o Audioslave subiu ao palco. Um problema técnico com os monitores de bateria atrasou o início, mas a banda, inspirada pelos estudantes de música que conheceram, preencheu o silêncio com uma jam improvisada de quatro minutos, aquecendo ainda mais a multidão.
Um Repertório para a História

Quando o som foi restabelecido, a banda lançou o primeiro acorde de “Set It Off” e a praça explodiu. Por duas horas e meia, o Audioslave entregou o show mais longo de sua carreira, com 26 músicas. O repertório foi uma ponte entre gerações e ideologias, incluindo hinos do Audioslave como “Cochise”, “Like a Stone” e “Show Me How to Live”, além de clássicos do Soundgarden (“Black Hole Sun”) e do Rage Against the Machine (“Killing in the Name”, “Bulls on Parade”).
A multidão cantava cada palavra, pulava em uníssono e se entregava a mosh pits frenéticos. Foi uma catarse coletiva, a libertação de décadas de repressão musical. Em um dos momentos mais emocionantes, Tom Morello fez um discurso em espanhol, agradecendo a calorosa recepção. O palco foi inundado com bilhetes de fãs, todos com a mesma mensagem: “Obrigado, nunca esqueceremos isso”.
O Legado do Trovão: Repercussões e Memória

O concerto do Audioslave em Havana foi muito mais do que um evento musical. Foi um divisor de águas cultural e político. Internamente, foi visto por alguns como um sinal de abertura do regime de Castro, que enfrentava a crise do Período Especial após o colapso da União Soviética. Outros, mais céticos, acusaram o governo de usar a banda como uma ferramenta de propaganda para melhorar sua imagem internacional.
A própria banda foi questionada por sua aparente contradição de criticar o capitalismo enquanto se apresentava em um país com um histórico de violações de direitos humanos. No entanto, para a juventude cubana, o show foi um sopro de liberdade, um reconhecimento de sua identidade e paixão por uma forma de arte há muito marginalizada.
Abrindo as Portas
O impacto mais duradouro do show foi a abertura de portas. O evento estabeleceu um precedente que encorajou outros artistas internacionais a se apresentarem em Cuba, culminando no mega show dos Rolling Stones em 2016. O concerto do Audioslave deu um golpe simbólico na censura, ajudou a legitimar o rock na ilha e inspirou uma nova geração de bandas locais.
Anos depois, Chris Cornell expressou sua surpresa e leve decepção por mais bandas americanas não terem seguido seus passos imediatamente. Ainda assim, o legado permaneceu. O show provou que a música tem o poder de transcender a política, de construir pontes onde os governos constroem muros e de unir as pessoas através de uma experiência humana compartilhada. O trovão do Audioslave em Havana pode ter durado apenas uma noite, mas seu eco ressoa até hoje.
Referências
- Morello, Tom. “High Fidel-ity: Tom Morello’s 2006 Audioslave Tour Diary.” SPIN, 19 de maio de 2017, https://www.spin.com/2017/05/tom-morello-audioslave-tour-diary/.
- Anonymous (El Toque). “Audioslave in Havana: The Concert that Marked a Generation.” Havana Times, 25 de julho de 2023, https://havanatimes.org/features/audioslave-in-havana-the-concert-that-marked-a-generation/.
- Karonte. “Audioslave em Cuba – o show histórico da banda de rock americana.” Karonte, 12 de novembro de 2013, https://karonte.com.br/audioslave-cuba-havana-rock-2005/.
- Wikipedia. “Live in Cuba (Audioslave album).” Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Live_in_Cuba_(Audioslave_album).
- Associated Press. “Audioslave first U.S. band to rock Cuba.” TODAY.com, 5 de maio de 2005, https://www.today.com/popculture/audioslave-first-u-s-band-rock-cuba-wbna7752134.
- Deusner, Stephen. “Audioslave: Live in Cuba DVD Review.” Pitchfork, 2 de novembro de 2005, https://pitchfork.com/reviews/albums/390-live-in-cuba-dvd/.