Nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, a partir de 1944, uma nova e aterrorizante tática emergiu no Teatro do Pacífico: os ataques suicidas dos kamikazes. Conhecidos como “vento divino”, esses pilotos japoneses transformaram seus aviões em mísseis humanos, mergulhando contra navios de guerra em um sacrifício final pelo imperador. Contudo, por trás da imagem de fanáticos impiedosos, existiam jovens repletos de emoções complexas, cujas últimas cartas revelam um mosaico de dever, medo, amor e resignação. Essas mensagens, escritas horas antes de suas missões sem retorno, oferecem um vislumbre raro e comovente da mentalidade desses homens, humanizando a história e desafiando nossas percepções sobre a guerra.
O Contexto Histórico que Forjou os Kamikazes

A tática kamikaze não foi um ato isolado de fanatismo, mas uma estratégia desesperada nascida de uma série de derrotas militares que empurraram o Japão para uma posição defensiva. Com a marinha e a força aérea imperial severamente enfraquecidas, o alto comando japonês buscou uma forma de infligir o máximo de dano com recursos limitados. A Batalha de Okinawa, em 1945, marcou o auge dessa tática, com ondas de ataques que, embora não tenham revertido o curso da guerra, causaram perdas significativas aos Aliados, afundando 36 navios e danificando outros 368.
Culturalmente, a ideia do auto-sacrifício estava profundamente enraizada no código bushido dos samurais, que valorizava a honra e a lealdade acima da vida. Para muitos pilotos, morrer em batalha pelo imperador era a maior honra possível, uma forma de se tornarem kami (deuses) e serem consagrados no Santuário Yasukuni. Essa mentalidade, combinada com a intensa propaganda nacionalista, preparou o terreno para a aceitação de uma tática tão extrema, que para a mentalidade ocidental, parecia incompreensível.
As Vozes nas Cartas: Entre o Dever e a Saudade

As cartas deixadas pelos pilotos kamikazes são documentos históricos de valor inestimável. Elas desmistificam a imagem monolítica do guerreiro fanático e revelam homens com profundas conexões familiares e anseios pessoais. O Tenente Haruo Araki, de 21 anos, escreveu à sua esposa um mês após o casamento: “Shigeko, por favor, perdoe-me por ter sido frio. Quando penso em seu futuro, e na longa vida pela frente, isso parte meu coração. Por favor, permaneça firme e viva feliz.” Sua carta demonstra a angústia de um recém-casado ciente de que seu sacrifício deixaria uma viúva para trás.
Outro exemplo comovente é a carta do Capitão Masanobu Kuno aos seus filhos pequenos: “Mesmo que não possam me ver, eu vou sempre estar observando vocês. Obedeçam a sua mãe e não a perturbem. Eu não posso ser o cavalinho para montar, mas vocês dois serão bons amigos.” Essas palavras mostram um pai amoroso, preocupado com o bem-estar de seus filhos e tentando oferecer conforto mesmo diante da morte iminente. Da mesma forma, o Tenente Sanehisa Uemura escreveu à sua filha recém-nascida, Motoko, na esperança de que ela crescesse para ser uma pessoa gentil e carinhosa, revelando o desejo de um futuro melhor para a próxima geração.
Capitão Masanobu Kuno

Caro Masanori e Kiyoko,
Mesmo que não possam me ver, eu vou sempre estar observando vocês. Obedeçam a sua mãe, e não a perturbem. Quando vocês crescerem, sigam o caminho que vocês gostariam e cresçam para serem boas pessoas. Não invejem o pai de outros, pois eu me tornarei um espírito e observarei de perto vocês dois. Ambos, estudem muito e ajudem sua mãe com o trabalho. Eu não posso ser o cavalinho para montar, mas vocês dois serão bons amigos. Do Pai.”
– Carta do Capitão Masanobu Kuno aos filhos de 5 e 2 anos, enviada na véspera do ataque.
Tenente Sanehisa Uemura

Motoko,
Muitas vezes você olhou e sorriu para o meu rosto. Você também dormiu em meus braços, e tomamos banho juntos. Quando você crescer e quiser saber sobre mim, pergunte a sua mãe e tia Kayo. Meu álbum de fotos foi deixado para você em casa. Dei-lhe o nome de Motoko, esperando que você fosse uma pessoa gentil, bondosa e carinhosa.
Eu quero ter a certeza de que você estará feliz quando crescer e se tornará uma noiva esplêndida, e mesmo que eu morra sem você me conhecer, você nunca deve se sentir triste. Quando você crescer e quiser me encontrar, por favor, venha ao Kudan*. E se você orar profundamente, com certeza o rosto de seu pai vai mostrar-se dentro do seu coração. Eu acredito que você vá ser feliz. Desde o seu nascimento você mostra grande semelhança a mim, e outras pessoas costumam dizer que quando eles te viram, sentiram como se estivessem me vendo.
Seu tio e minha tia vão cuidar bem de você que é a minha única esperança de sua mãe sobreviver. Mesmo que alguma coisa me aconteça, você certamente não deve pensar em si mesma como uma filha sem pai. Estou sempre te protegendo. Por favor, seja uma pessoa boa com as outras. Quando você crescer e começar a pensar em mim, por favor, leia esta carta. Do pai.
PS: No meu avião, eu continuo carregando como um amuleto a boneca que você ganhou quando nasceu. Então isso significa, Motoko, que está junto do pai. Digo isso porque eu estar aqui sem o seu conhecimento faz meu coração doer.”
– Considerada uma das cartas mais bonitas, foi escrita pelo Tenente Sanehisa Uemura de 25 anos à filha Motoko.
* Kudan” (九段) é a colina/bairro de Tóquio onde fica o Santuário Yasukuni (Yasukuni Jinja), um santuário xintoísta que honra os mortos de guerra.
Cabo Nobuo Aihana

Entrei para o Corpo Shinbu Esquadrão de Ataque e vou pagar minha dívida de gratidão para com o país.
Pai e Mãe, eu me propus à batalha em alto astral. Pai e Mãe, eu coloquei uma foto do meu irmão mais velho no meu macacão de vôo. Pai e Mãe, estou profundamente envergonhado de mim mesmo que, até o final, não corrigi o meu discurso impróprio e rude de uma criança.
Mãe, você me criou desde que eu tinha seis anos de idade, e eu nunca disse “mãe” para você que é mais do que minha mãe biológica. Como deve ter sido triste para você. Eu pensei muitas vezes em chamá-la, mas eu não fiz diante de você, pois tinha vergonha.
Agora é a hora para eu chamá-la em voz alta: “Mãe”.
Provavelmente o meu irmão mais velho, no centro da China, também sente o mesmo. Mãe, por favor, perdoe nós dois. Agora, como estou saindo para a batalha para fazer um ataque especial, a minha única preocupação são as duas coisas mencionadas acima. Para além destas, eu não tenho arrependimentos.
As pessoas vivem 50 anos e eu viverei uma vida longa de 20 anos de idade. Quanto aos 30 anos restantes, dei a metade a cada um de vocês, pai e mãe. Por favor, usem o dinheiro guardado na caixa de cigarros.
Pai e Mãe, eu estou indo. Eu estou indo com um sorriso e a certeza de destruir um navio inimigo.”
– Carta do Cabo Nobuo Aihana, com 18 anos. Aki, sua madrasta, recebeu a carta depois do fim da guerra e a manteve como o seu bem mais precioso até o dia de sua morte, em 1975, quando faleceu aos 77 anos.
O Legado Imortal das Últimas Cartas dos Kamikazes

As últimas cartas dos kamikazes são mais do que simples despedidas; são um testemunho da complexidade da experiência humana em tempos de guerra. Elas nos lembram que, por trás das estatísticas e das estratégias militares, havia indivíduos com sonhos, medos e amores.
O Cabo Nobuo Aihana, de 18 anos, usou sua carta final para finalmente chamar sua madrasta de “mãe”, um ato de ternura e arrependimento que humaniza a figura do soldado. Ichizo Hayashi, em sua carta à mãe, expressou o conflito interno que sentia: “Tenho o prazer de ter sido escolhido como um membro da Força de Ataque Especial, mas não posso deixar de chorar quando penso em você, mãe.”
Hoje, essas cartas são preservadas em museus como o Chiran Peace Museum, servindo como um poderoso lembrete dos custos humanos da guerra. Elas nos convidam a olhar para além dos estereótipos e a refletir sobre as forças que levam os seres humanos a atos extremos de sacrifício. A história dos kamikazes, contada através de suas próprias palavras, é uma lição sombria e comovente sobre a natureza da guerra e a resiliência do espírito humano, um legado que continua a ecoar através do tempo, pedindo para que tais sacrifícios nunca mais sejam necessários.
Referências
- DAVID, Saul. The Divine Wind: Japan’s Kamikaze Pilots of World War II. The National WWII Museum, 2020.
- KINCAID, Chris. Final Letters of Kamikaze Pilots. Japan Powered, 2016.
- Last letters from Japan’s young kamikaze pilots offer rare insight into their final hours. CNN, 2024.
- Kamikaze Images. Letters, Poems, Diaries, and Other Writings.
