Em 1985, a capa da revista National Geographic estampou um rosto que se tornaria um dos mais icônicos do século XX. Uma jovem refugiada afegã, com intensos olhos verdes e um olhar que misturava medo, desafio e resiliência, cativou o mundo. Conhecida por 17 anos apenas como a “Menina Afegã”, sua imagem transcendeu o fotojornalismo para se tornar um símbolo universal do sofrimento dos refugiados e da dignidade humana em meio ao caos da guerra. Este artigo mergulha na história de Sharbat Gula, a mulher por trás do véu de mistério, desde o momento em que foi imortalizada até sua conturbada jornada pela vida.
O Contexto: A Invasão Soviética e a Crise dos Refugiados
Para entender a força da fotografia de Sharbat Gula, é preciso voltar à Guerra Soviético-Afegã (1979-1989). A invasão soviética mergulhou o Afeganistão em uma década de conflito brutal, forçando milhões de pessoas a fugir de suas casas. Aldeias foram bombardeadas, famílias foram dizimadas e uma geração inteira cresceu em meio à violência. Foi nesse cenário de desespero que milhões de afegãos buscaram refúgio no vizinho Paquistão, estabelecendo-se em campos superlotados e precários, como o de Nasir Bagh, onde a história de Sharbat Gula se cruzaria com a do fotógrafo Steve McCurry.
A guerra não era apenas um conflito militar, mas uma crise humanitária de proporções catastróficas. A vida nos campos de refugiados era marcada pela escassez de alimentos, água e saneamento básico. Doenças se espalhavam rapidamente, e a assistência médica era insuficiente. Para as crianças, a guerra significava a perda da infância, a interrupção da educação e a exposição constante à violência e à morte. A história de Sharbat Gula, que perdeu a mãe para uma apendicite durante a fuga e teve sua aldeia bombardeada, era a história de milhões de outras crianças afegãs.
O Encontro: Um Retrato em Meio ao Caos
A Menina na Tenda da Escola

Em dezembro de 1984, o fotógrafo americano Steve McCurry estava documentando a situação dos refugiados afegãos para a National Geographic. Em uma tenda que servia como escola para meninas no campo de Nasir Bagh, ele notou uma jovem de aproximadamente 12 anos. Seus olhos, de um verde penetrante, se destacavam em meio à poeira e à pobreza do local. McCurry, sentindo que havia algo especial naquela menina, pediu permissão para fotografá-la. Tímida e assustada, ela concordou, e em poucos cliques, a imagem que rodaria o mundo foi capturada.
O momento foi breve e quase casual. McCurry usou um filme Kodachrome 64 e uma lente Nikkor 105mm f/2.5, uma combinação que permitiu capturar a intensidade do olhar de Sharbat com uma clareza impressionante. A luz natural que entrava na tenda iluminava seu rosto de forma suave, destacando a textura de sua pele e o brilho de seus olhos. A expressão de Sharbat, uma mistura de curiosidade e desconfiança, era um reflexo da realidade de uma criança que cresceu em meio à guerra, forçada a amadurecer antes do tempo.
A Fotografia: Um Ícone Global
O Olhar que Parou o Mundo

Publicada na capa da National Geographic em junho de 1985, a foto se tornou um fenômeno instantâneo. O olhar de Sharbat Gula era uma janela para a alma de um povo em sofrimento. Havia nela uma mistura de vulnerabilidade e força, uma acusação silenciosa contra a brutalidade da guerra. A composição, com o xale vermelho emoldurando seu rosto e o fundo verde complementando seus olhos, criou uma obra de arte que era, ao mesmo tempo, um documento histórico. A imagem foi comparada à Mona Lisa de Leonardo da Vinci, um retrato enigmático que convidava à contemplação e à empatia.
O impacto da foto foi imenso. Ela humanizou a crise dos refugiados afegãos, dando um rosto ao sofrimento de milhões de pessoas. A imagem foi reproduzida em inúmeras publicações, cartazes e campanhas de direitos humanos, tornando-se um dos retratos mais reconhecidos da história da fotografia. O editor da National Geographic na época, Wilbur E. Garrett, escolheu a foto para a capa por sua capacidade de contar uma história complexa em uma única imagem, uma história de medo, raiva e dignidade.
A Busca: 17 Anos de Mistério
Apesar da fama global da fotografia, a identidade da “Menina Afegã” permaneceu um mistério por quase duas décadas. Steve McCurry e a equipe da National Geographic nunca souberam seu nome. Em 2002, eles decidiram retornar ao Paquistão e ao Afeganistão em uma busca incansável para encontrá-la. A missão era quase impossível: encontrar uma mulher, agora com cerca de 30 anos, em uma região devastada pela guerra e sem registros formais. Após muitas pistas falsas e meses de procura, eles finalmente a encontraram em uma remota aldeia afegã.
A busca foi uma jornada épica por si só, envolvendo uma equipe de jornalistas, tradutores e especialistas em reconhecimento facial. Eles mostraram a foto a inúmeras pessoas em campos de refugiados e aldeias, na esperança de que alguém a reconhecesse. A tecnologia de reconhecimento de íris, desenvolvida por John Daugman, foi fundamental para confirmar a identidade de Sharbat Gula, comparando a íris de seus olhos na foto de 1984 com a de 2002.
O Reencontro: A Identidade Revelada
A Mulher por Trás do Ícone

Sharbat Gula, agora uma mulher casada e mãe de três filhas, não se lembrava de ter sido fotografada. Sua vida havia sido marcada pela dureza da guerra e da pobreza. Ela nunca havia visto a famosa foto que a tornou um ícone. A confirmação de sua identidade foi feita através da análise da íris de seus olhos, que se revelou tão única quanto uma impressão digital. O reencontro foi um momento emocionante, que conectou o passado e o presente e finalmente deu um nome e uma história à “Menina Afegã”.
A vida de Sharbat Gula, como a de muitas mulheres afegãs, foi de luta e sobrevivência. Ela se casou aos 13 anos, teve cinco filhos (um dos quais morreu na infância) e nunca aprendeu a ler ou escrever. Sua história era um microcosmo da tragédia afegã, uma vida de perdas, deslocamentos e resiliência. O reencontro com McCurry trouxe sua história à tona, mas também expôs a dura realidade de sua vida, longe do glamour da fama internacional.
Vida Após a Fama: Entre a Anormalidade e a Adversidade
Após ser encontrada, a vida de Sharbat Gula não mudou drasticamente. Ela continuou a viver uma vida tradicional e reclusa, longe dos holofotes. A National Geographic criou um fundo para ajudar sua família e garantir a educação de seus filhos. No entanto, a fama trouxe consigo novos desafios. Em 2016, ela foi presa no Paquistão por posse de documentos de identidade falsos, um problema comum entre os milhões de refugiados afegãos que vivem no país sem status legal. A prisão de um ícone global gerou comoção internacional.
A prisão de Sharbat Gula destacou a situação precária dos refugiados afegãos no Paquistão, muitos dos quais vivem em um limbo legal, sem cidadania e com medo constante de deportação. O caso de Sharbat tornou-se um símbolo da luta por direitos e dignidade dos refugiados, e sua deportação para o Afeganistão, apesar de sua condição de ícone, mostrou a fragilidade de sua situação.
Deportação e um Novo Começo
Asilo na Itália
Após sua prisão, Sharbat Gula foi deportada para o Afeganistão, onde foi recebida como uma heroína nacional pelo presidente. No entanto, a instabilidade contínua em seu país de origem e a tomada do poder pelo Taliban em 2021 a colocaram em risco novamente. Em novembro de 2021, a pedido de organizações de direitos humanos, o governo italiano concedeu asilo a Sharbat Gula e sua família. Hoje, ela vive na Itália, um novo capítulo em uma vida marcada pela guerra, pelo exílio e por um retrato que a tornou imortal.
A mudança para a Itália representou uma nova esperança para Sharbat Gula e sua família, uma chance de viver em paz e segurança após décadas de incerteza. Sua jornada, de um campo de refugiados no Paquistão a uma nova vida na Europa, reflete a complexidade da crise global de refugiados e a busca universal por um lugar seguro para chamar de lar.
O Legado da Menina Afegã
A história de Sharbat Gula é um poderoso testemunho do impacto humano dos conflitos e da resiliência do espírito humano. Sua imagem continua a ser um símbolo da crise dos refugiados em todo o mundo, um lembrete constante de que por trás de cada estatística há um rosto, uma história e uma vida. O olhar de Sharbat Gula, capturado há quase quatro décadas, permanece tão relevante e comovente hoje quanto era em 1985, um apelo atemporal à paz e à compaixão.
O legado da “Menina Afegã” é multifacetado. É um legado sobre o poder da fotografia para moldar a percepção pública e gerar empatia. É um legado sobre a resiliência de um povo que enfrentou décadas de guerra e sofrimento. E é um legado sobre a responsabilidade que temos como comunidade global de proteger e acolher os mais vulneráveis. A história de Sharbat Gula não é apenas a história de uma menina, mas a história de uma nação e de uma humanidade compartilhada.
Referências
- National Geographic. A Life Revealed. https://www.nationalgeographic.com/magazine/article/afghan-girl-revealed.
- BBC News. Afghan girl: Sharbat Gula’s long journey to safety in Italy. https://www.bbc.com/news/world-asia-59425292.
- The Guardian. ‘Afghan girl’ Sharbat Gula arrives in Italy for refuge. https://www.theguardian.com/world/2021/nov/25/afghan-girl-sharbat-gula-arrives-in-italy-for-refuge.
- CBS News. The “Afghan Girl” is safe in Italy. https://www.cbsnews.com/news/sharbat-gula-afghan-girl-safe-in-italy/.