Profeta Gentileza: Murais que Transformaram o Rio de Janeiro

O Profeta Gentileza sorrindo, vestindo sua icônica túnica branca. Sua presença nas ruas do Rio de Janeiro era marcada por gestos de bondade, distribuição de flores e palavras de conforto aos transeuntes.

O Profeta Gentileza sorrindo, vestindo sua icônica túnica branca. Sua presença nas ruas do Rio de Janeiro era marcada por gestos de bondade, distribuição de flores e palavras de conforto aos transeuntes.

Nas ruas movimentadas do Rio de Janeiro, entre o caos do trânsito e a pressa dos pedestres, uma figura singular se destacava. Vestido com uma túnica branca, barba longa e carregando um estandarte com flores e palavras de afeto, José Datrino, o Profeta Gentileza, tornou-se um ícone da paisagem urbana carioca. Sua missão, autoproclamada após uma tragédia que abalou o Brasil, era simples e, ao mesmo tempo, revolucionária: espalhar a gentileza. Ele não apenas pregava, mas vivia sua filosofia, transformando as pilastras de um viaduto em uma galeria de arte a céu aberto com sua caligrafia única e a mensagem que se tornaria seu legado imortal: “Gentileza gera gentileza”.

Este artigo explora a jornada de José Datrino, desde sua infância no campo até sua transformação em Profeta Gentileza. Analisaremos o evento catalisador de sua missão, a criação de seus famosos murais, a filosofia por trás de suas palavras e o impacto duradouro que sua figura e sua mensagem tiveram na cultura brasileira. A história de Gentileza é a prova de que um único homem, armado apenas com bondade e um pincel, pode desafiar a indiferença de uma metrópole e deixar uma marca indelével no coração de uma nação.

De José Datrino ao Profeta Gentileza: O Chamado

Nascido em Cafelândia, São Paulo, em 11 de abril de 1917, José Datrino teve uma infância humilde, marcada pelo trabalho na terra. Filho de imigrantes italianos, ele aprendeu desde cedo a amansar burros, uma habilidade que, anos mais tarde, ele metaforicamente aplicaria aos “burros homens da cidade que não tinham esclarecimento”. Desde jovem, Datrino sentia que tinha uma missão especial, uma premonição que o acompanhou enquanto construía uma vida convencional como empresário de transportes, marido e pai de cinco filhos no Rio de Janeiro. Ele era um homem de negócios, imerso no mundo material que mais tarde viria a renunciar.

A Tragédia do Gran Circus Norte-Americano

O Profeta Gentileza em suas andanças pelas ruas do Rio de Janeiro, carregando seu característico estandarte colorido com mensagens de amor e bondade. Sua túnica branca e barba longa se tornaram símbolos de sua missão de espalhar gentileza pela cidade. À direita, retrato em preto e branco do Profeta Gentileza, mostrando sua expressão serena e determinada. José Datrino dedicou décadas de sua vida pregando contra o materialismo e a favor de um mundo mais gentil e natural.
O Profeta Gentileza em suas andanças pelas ruas do Rio de Janeiro, carregando seu característico estandarte colorido com mensagens de amor e bondade. Sua túnica branca e barba longa se tornaram símbolos de sua missão de espalhar gentileza pela cidade. À direita, retrato em preto e branco do Profeta Gentileza, mostrando sua expressão serena e determinada. José Datrino dedicou décadas de sua vida pregando contra o materialismo e a favor de um mundo mais gentil e natural.

O ponto de virada em sua vida ocorreu em 17 de dezembro de 1961, com o incêndio do Gran Circus Norte-Americano em Niterói, uma das maiores tragédias da história circense mundial, que vitimou mais de 500 pessoas, a maioria crianças. O evento traumático chocou o país. Seis dias depois, na antevéspera do Natal, José Datrino afirmou ter ouvido “vozes astrais” que o ordenaram a abandonar sua vida material. Ele pegou um de seus caminhões, foi até as cinzas do circo e ali iniciou sua nova vida.

No local da tragédia, ele plantou um jardim e uma horta, criando o “Paraíso Gentileza”. Por quatro anos, ele permaneceu ali, oferecendo conforto e palavras de bondade aos familiares das vítimas, tornando-se “José Agradecido”, o Profeta Gentileza. Ele afirmava que não havia perdido ninguém da sua família no incêndio, mas que sentiu o chamado para consolar aqueles que sofriam.

A Missão Urbana: Gentileza nas Ruas do Rio

Após deixar Niterói, a partir de 1970, Gentileza iniciou sua peregrinação pelas ruas do Rio de Janeiro. Com sua túnica branca, barba comprida e um estandarte colorido com suas mensagens, ele se tornou uma presença constante e cativante. Ele circulava por praças, ônibus, trens e nas barcas da travessia Rio-Niterói, pregando sobre amor, bondade e respeito pela natureza.

Sua abordagem era direta e poética. Aos que o chamavam de louco, ele respondia com uma sabedoria desconcertante: “Sou maluco para te amar e louco para te salvar”. Ele não apenas falava, mas agia, distribuindo flores e sorrisos, quebrando a monotonia e a indiferença da vida urbana. Sua figura era um oásis de calma e cor em meio à agitação da cidade.

A Filosofia do “Capeta-Capital”

A pregação de Gentileza ia além de simples palavras de afeto. Ele desenvolveu uma crítica contundente à sociedade moderna, que ele chamava de “mundo do capeta-capital”. Para ele, o dinheiro e o materialismo eram a raiz de todos os males, a causa da falta de gentileza e do afastamento da natureza. Ele pregava contra o “remédio-veneno” e a “comida-veneno”, referindo-se à indústria farmacêutica e alimentícia.

Sua filosofia era um chamado a um modo de vida mais simples, mais natural e mais conectado com o divino, que ele via em todas as coisas. Ele se apresentava como o “Profeta Gentileza”, o “José Agradecido”, que veio para lembrar aos homens os ensinamentos de Deus que, segundo ele, haviam sido esquecidos em troca do lucro.

A Galeria a Céu Aberto: Os Murais do Viaduto do Gasômetro

A partir de 1980, o Profeta Gentileza encontrou sua tela mais duradoura: as 56 pilastras do Viaduto do Gasômetro, uma via expressa que corta a zona portuária do Rio. Em uma extensão de 1,5 km, ele inscreveu seus pensamentos e ensinamentos em uma caligrafia única, usando as cores verde e amarelo.

Os murais se tornaram um manifesto visual, uma crítica à sociedade de consumo e um chamado à reflexão. Frases como “Gentileza gera gentileza”, “Não use problemas, use a natureza” e “Onde não há Deus, o Diabo reina” transformaram o concreto cinza em um espaço de diálogo e poesia. O trabalho era exaustivo, realizado sob o sol e a poluição, mas Gentileza persistiu por quase uma década, movido por sua missão.

Arte como Pregação

 Vista ampla dos murais do Profeta Gentileza nas pilastras do Viaduto do Gasômetro. Entre 1980 e 1990, ele pintou 56 pilastras ao longo de 1,5 km, criando uma galeria de arte a céu aberto que se tornou patrimônio cultural do Rio de Janeiro.
Vista ampla dos murais do Profeta Gentileza nas pilastras do Viaduto do Gasômetro. Entre 1980 e 1990, ele pintou 56 pilastras ao longo de 1,5 km, criando uma galeria de arte a céu aberto que se tornou patrimônio cultural do Rio de Janeiro.

Os murais não eram apenas decoração; eram a extensão de sua pregação. Cada pilastra se tornou um capítulo de seu evangelho urbano. Durante a ECO-92, a conferência da ONU sobre meio ambiente realizada no Rio, Gentileza se posicionou estrategicamente no viaduto para interpelar os líderes mundiais com suas mensagens, clamando por mais gentileza com o planeta. Sua arte era uma forma de ativismo pacífico, uma tentativa de despertar a consciência coletiva para valores que ele acreditava estarem se perdendo. A caligrafia, por si só, era uma obra de arte, com letras desenhadas de forma a criar um padrão visual único e reconhecível.

O Legado de Gentileza

O Profeta Gentileza faleceu em 29 de maio de 1996, aos 79 anos, em Mirandópolis, cidade de seus familiares, onde foi sepultado. No entanto, sua mensagem continua mais viva do que nunca. Seus murais, que chegaram a ser vandalizados e cobertos de tinta cinza pela prefeitura em um ato de descaso com a memória da cidade, foram posteriormente restaurados graças à mobilização popular e ao projeto “Rio com Gentileza”, liderado pelo professor Leonardo Guelman. Em maio de 2000, a restauração foi concluída e, no mesmo ano, os murais foram tombados como patrimônio cultural da cidade, garantindo sua preservação para as futuras gerações.

Gentileza na Cultura Popular

Detalhe de um mural do Profeta Gentileza com suas mensagens características sobre amor, natureza e crítica ao materialismo. Suas frases como "Gentileza gera gentileza" e "Não use problemas, use a natureza" se tornaram mantras da cultura carioca.
Detalhe de um mural do Profeta Gentileza com suas mensagens características sobre amor, natureza e crítica ao materialismo. Suas frases como “Gentileza gera gentileza” e “Não use problemas, use a natureza” se tornaram mantras da cultura carioca.

A figura de Gentileza transcendeu as ruas e inspirou a cultura brasileira. O compositor Gonzaguinha e, mais tarde, a cantora Marisa Monte, imortalizaram o profeta em canções que levam seu nome. A música de Marisa Monte, em particular, que sampleia a voz do próprio Gentileza, popularizou sua filosofia para uma nova geração, transformando “Gentileza gera gentileza” em um mantra nacional. Em 2001, a escola de samba Acadêmicos do Grande Rio o homenageou no carnaval, e em 2024, o novo terminal de transportes do Rio de Janeiro foi batizado de Terminal Intermodal Gentileza, em sua honra, consolidando seu lugar na história da cidade.

A Relevância de uma Mensagem Atemporal

Vista ampla dos murais do Profeta Gentileza nas pilastras do Viaduto do Gasômetro. Entre 1980 e 1990, ele pintou 56 pilastras ao longo de 1,5 km, criando uma galeria de arte a céu aberto que se tornou patrimônio cultural do Rio de Janeiro.
Vista ampla dos murais do Profeta Gentileza nas pilastras do Viaduto do Gasômetro. Entre 1980 e 1990, ele pintou 56 pilastras ao longo de 1,5 km, criando uma galeria de arte a céu aberto que se tornou patrimônio cultural do Rio de Janeiro.

A história do Profeta Gentileza é um lembrete poderoso de que a transformação social pode começar com um gesto individual. Em um mundo cada vez mais polarizado e apressado, sua mensagem de amor, respeito e, acima de tudo, gentileza, ressoa com uma urgência renovada. Ele nos ensinou que a bondade não é uma fraqueza, mas uma força capaz de curar feridas, conectar pessoas e transformar a realidade.

O homem que um dia foi chamado de louco deixou como herança uma filosofia de vida que continua a inspirar e a nos lembrar do poder de um simples ato de gentileza. Sua vida é a prova de que a verdadeira riqueza não está nos bens materiais, mas na capacidade de ser gentil e agradecido. Ele nos lembra que, no final das contas, o que realmente importa é a conexão humana e o cuidado que temos uns com os outros.

Sua mensagem é um antídoto para o cinismo e a indiferença, um convite para olharmos ao nosso redor e vermos o outro com mais empatia e compaixão. Ele provou que a gentileza, de fato, gera gentileza, e que essa é a semente para um mundo mais humano e solidário. Sua figura permanece como um farol, iluminando o caminho para uma sociedade mais justa e amorosa.

Referências

  1. Guelman, Leonardo. Brasil: Tempo de Gentileza. EdUFF, 2000.
  2. Monte, Marisa. “Gentileza”. Memórias, Crônicas e Declarações de Amor, 2000.
  3. Wikipedia. Profeta Gentileza. https://pt.wikipedia.org/wiki/Profeta_Gentileza.
  4. O Globo. Pinturas de Gentileza vão ser mantidas com desmonte do Viaduto da Perimetral. https://oglobo.globo.com/rio/pinturas-de-gentileza-vao-ser-mantidas-com-desmonte-do-viaduto-da-perimetral-10889109.
  5. G1. Terminal Intermodal Gentileza é inaugurado no Rio. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/02/23/terminal-intermodal-gentileza-e-inaugurado-no-rio.ghtml.

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09/11/2025

Conheça a história de José Datrino, o Profeta Gentileza, que transformou pilastras do Rio em arte e espalhou sua mensagem de amor e bondade pelas ruas.

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