A libertação da Europa do jugo nazista em 1944 não foi apenas um momento de euforia e celebração. Sob a superfície da alegria, um capítulo sombrio e muitas vezes esquecido da história se desenrolava: a punição pública e brutal de mulheres acusadas de “colaboração horizontal” com as forças de ocupação alemãs. Este fenômeno, marcado pela raspagem de cabeças e humilhação pública, revela as complexas e dolorosas cicatrizes deixadas pela guerra, onde a justiça se misturava com a vingança e a misoginia.
As Raízes da Punição: Uma Vingança com História

A prática de raspar a cabeça de mulheres como forma de punição não nasceu com a Segunda Guerra Mundial. Suas raízes remontam a tempos bíblicos e foram amplamente utilizadas na Idade Média como castigo para o adultério. No século XX, a prática foi ressuscitada em vários contextos de conflito. Em 1923, mulheres alemãs que se relacionaram com tropas francesas na Renânia sofreram o mesmo destino.
Durante a Guerra Civil Espanhola, falangistas rasparam as cabeças de mulheres republicanas, e os próprios nazistas usaram a mesma tática contra mulheres alemãs que se relacionaram com não-arianos. Portanto, a “épuration sauvage” (purga selvagem) de 1944 na França não foi um ato espontâneo, mas a reencenação de um ritual de humilhação profundamente enraizado na história europeia.
O Perfil das Vítimas “Tondues”: Entre a Sobrevivência e a Traição

Embora a narrativa popular pintasse as “tondues” (raspadas) como traidoras que se entregaram ao inimigo por luxo ou ideologia, a realidade era muito mais complexa. Muitas das vítimas eram jovens mães cujos maridos estavam em campos de prisioneiros de guerra, e a colaboração era, muitas vezes, a única forma de obter comida para si e para seus filhos.
Como observou o escritor alemão Ernst Jünger, “comida é poder”. Outras eram prostitutas que simplesmente continuaram seu ofício com os novos “clientes”, ou adolescentes que se associaram com soldados alemães por tédio ou bravata. Em muitos casos, as acusações eram falsas, alimentadas por ciúmes e inveja daqueles que conseguiam acesso a bens e alimentos escassos.
Estima-se que pelo menos 20.000 mulheres tiveram suas cabeças raspadas, mas o número real pode ser muito maior, considerando os cerca de 80.000 a 200.000 bebês franceses com pais alemães nascidos durante a ocupação.
O Ritual da Humilhação e a Fotografia de Robert Capa

O processo de humilhação era um espetáculo público, um “carnaval feio”, como descreveu o historiador Antony Beevor. As mulheres eram arrastadas para praças públicas, onde seus cabelos eram raspados por “tondeurs” (raspadores), muitos dos quais eram eles próprios pequenos colaboradores tentando desviar a atenção de suas próprias ações. Em seguida, as vítimas eram frequentemente marcadas com suásticas, despidas parcialmente e desfiladas pelas ruas em caminhões, ao som de vaias e insultos.
A Mulher Raspada de Chartres

Foi em um desses eventos, em Chartres, em 18 de agosto de 1944, que o fotógrafo Robert Capa capturou uma de suas imagens mais icônicas: uma mulher de cabeça raspada, segurando seu bebê, sendo escoltada por uma multidão enfurecida. A fotografia, que se tornou um símbolo da complexidade moral da libertação, expôs a face sombria da justiça popular e a vulnerabilidade das mulheres em tempos de guerra.
O Legado e o Reconhecimento Tardio

A prática da “épuration sauvage” não se limitou à França. Ocorreu também na Bélgica, Itália, Noruega e outros países ocupados. Na Noruega, as “tyskertøs” (vadias alemãs) foram presas e exiladas, e seus filhos estigmatizados. Apenas em 2018 a primeira-ministra norueguesa, Erna Solberg, pediu desculpas formais pelo tratamento dado a essas mulheres.
Na França, o reconhecimento foi ainda mais lento. Em 2009, a Alemanha ofereceu cidadania aos “filhos da outra margem do Reno”, um gesto simbólico de reconciliação. As humilhações pós-Segunda Guerra Mundial permanecem um lembrete doloroso de que a linha entre justiça e vingança é tênue, e que as mulheres, em tempos de conflito, são frequentemente as primeiras a pagar o preço da humilhação nacional.
Referências e Estudos Científicos
- Beevor, Antony. “An ugly carnival”. The Guardian, 2009.
- Wikipedia. “Horizontal collaboration”.
- TIME. “Robert Capa Reveals an Ugly Side of Liberation in WWII France”. 2014.
- Imperial War Museums. “Les Tondues And The Liberation Of France”.
- The New York Times. “Who Was the Real ‘Shaved Woman of Chartres’?”. 2023.
- Le Monde. “The shaved woman of Chartres: From history to fiction”. 2023.
- Magnum Photos. “75th Anniversary of D-Day • Robert Capa”. 2019.
- PBS. “Reporting America at War . Robert Capa . Photo Gallery”.